Com o advento da pandemia do coronavírus em 2019 e a imposição de isolamento social como forma de mitigar a contaminação acelerada, as pessoas precisaram (re) criar modalidades de trabalho, de ensino e aprendizagem, de relacionamentos, de consumo, de interações sociais e formas de entretenimento. Teria sido o “cafezinho” substituído pelos jogos eletrônicos na pausa do home office e o Minecraft, uma espécie de Lego digital, a maneira de crianças e adolescentes sobreviverem a essa realidade através da criação de seu próprio mundo (mine = meu, craft = construção)? 

Um estudo recente da Visa Consulting & Analytics no Brasil, publicando pelo Valor Investe (2021) apontou crescimento de 140% de transações financeiras realizadas em plataforma de jogos eletrônicos em 2020 em comparação ao ano anterior. E, as cidades que lideram essas compras são: São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Brasília (DF), Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS).

Os jogos e jogadores (os gamers) já existiam antes da pandemia, há cerca de duas ou três décadas, quando o avanço inquestionável do uso da tecnologia no mundo contemporâneo, a inteligência artificial e aparelhos eletrônicos se tornaram mais acessíveis e a um número cada vez maior de pessoas. Outro uso bastante relevante, além de jogos eletrônicos, entre crianças e adolescentes, é o Youtube. Este ganhou um caráter exploratório mais aderente ao seu desejo por conhecimento e menos disciplinatório do que as metodologias tradicionais de ensino nas escolas.

Mas, quando o jogar se torna preocupante? 

Na tentativa de responder a essa pergunta, retomo Freud, em 1908, que compara o jogo na criança à poesia. A criança, diz ele, cria pelo jogo um mundo dela ou, mais exatamente, reordena-o segundo sua ideia as coisas desse mundo. Assim, Freud, destacava a importância do brincar como um recurso psíquico que é base para transformar os mal-estares e frustrações inerentes à vida cotidiana em algo mais palatável, lúdica e bem-humorada. O jogo do Fort-Da, trazido à tona por Freud a partir da observação de seu neto muito pequeno, representa talvez uma brincadeira inaugural na qual a criança, diante de um afastamento físico para com sua mãe com o qual não estava ainda acostumado, substitui-a por um objeto (carretel), arremessando e trazendo-a de volta de acordo com seu desejo, portanto transformando uma vivência passiva (abandono materno temporário) em ativa (por ele controlada em seu jogo). Na repetição, o sujeito chega a um acordo, ele refaz o que lhe foi feito, a criança brincava com o ir embora de sua mãe (MANNONI, 1999).

Nesse sentido, o jogo possui um caráter de fazer de novo e de novo, o sujeito reinicia sempre “só mais uma vez”; o jogo, no entanto, pode se tornar uma compulsão à repetição de tal forma que, pensando ser um sujeito de escolha, o jogador, na realidade, está submetido a um mandato de gozo, de aspecto “masturbatório”. O conceito de pulsão é fundamental na psicanálise – tem um impulso, tem uma fonte, um objeto e um alvo (LACAN, 2008). A com (pulsão) busca uma descarga de excitação pela repetição de um desejo nunca satisfeito, busca satisfazer desejos inconscientes que foram recalcados pela cultura. E por uma satisfação que nunca se concretiza se repete e faz ser o sintoma uma “metáfora do desejo”, ou seja, no sintoma há uma satisfação às avessas desse “desejo em impasse, proibido de se satisfazer na realidade, obrigado a se disfarçar e a usufruir por meios substitutivos” (FORBES, 2012). Nas palavras de Lacan, “sintoma apresenta-se sob uma máscara, apresenta-se de forma paradoxal” (LACAN, 1957-1958)

O desejo é a matéria do inconsciente e é estruturado como uma linguagem, sendo esta a condição do inconsciente. São os chistes, os atos falhos, os sonhos, as repetições as manifestações desse inconsciente que para ser compreendido, como disse Lacan em Os escritos, deve ser “ao pé da letra” (LACAN, 1998). O paciente quando é convidado a falar tudo o que vier à cabeça escutamos sua livre associação, apreendemos a cadeia de significantes e significados e, assim, cada palavra é um ponto de partida na compreensão dos sintomas na clínica psicanalítica do século XXI que está atravessada pelos jogos eletrônicos.

Chegam na clínica, pais com as seguintes queixas sobre os filhos gamers:

- passam horas no celular;

- trocam o dia pela noite;

- apresentam oscilação de humor;

- estão agressivos; 

- estão desatentos;

- estão com baixo desempenho escolar;

- possuem pouca ou nenhuma interação social;

- estão com comprometimento do desenvolvimento físico (crescimento abaixo da média da idade, excesso ou baixo peso etc.)

O paciente traz para a análise um discurso do que lhe aconteceu, independente do conteúdo ser real ou imaginário, e, mais do que isso, possibilita e ele recontar sua história no registro da palavra pela linguagem simbólica. O símbolo pode ser compreendido como a palavra que se separa de um determinado objeto e ganha uma vida independente, podendo uma mesma palavra ter vários outros significados. Lacan afirma que “atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será nunca esgotado” (LACAN, 1998).

Essa forma de linguagem – a linguagem simbólica – insere o sujeito na cultura, ordenando suas relações sociais, inaugurando um modo diferente de relação com a realidade no sentido de retirar o caráter de culpa e implicá-lo na responsabilidade, no mundo, pelos seus atos, sabendo da “dor e delícia de ser o que é” (Costa, 1982) e deslocando sua queixa narcísica. É nesse ponto que a psicanálise proporciona um espaço de fala sobre a angústia que lhe provoca quando seu desejo não é satisfeito; e, nas palavras de Lacan: “o que está em jogo numa psicanálise é o advento, no sujeito, do pouco de realidade que esse desejo sustente nele em relação aos conflitos simbólicos e às fixações imaginárias, como meio de harmonização destes, e nossa via é a experiência intersubjetiva em que o desejo se faz reconhecer” (LACAN, 1998, p. 281). 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


COSTA, Gal. Dom de iludir, 1982.

FORBES, Jorge. Inconsciente e Responsabilidade – a psicanálise do século XXI. São Paulo: Manole, 2012.

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ª ed – Rio de Janeiro, Zahar, 2008).

_______ (1957-1958). O Seminário. Livro 5:  As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

_______. Os escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

MANNONI, Maud. A Criança, sua “Doença” e os Outros. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria 1999.

https://valorinveste.globo.com/objetivo/gastar-bem/noticia/2021/01/23/com-pandemia-mercado-de-games-cresce-140percent-no-brasil-aponta-estudo.ghtml